1. Consciência
Histórica: motivos e razões para se pensar a História além do viés tradicional.
Uma abordagem tradicional da História acaba a aceitando como repetição incessante de datas, nomes, conceitos. Esse caminho tradicional acabou sendo predominante porque a História em geral e a História da Educação em específico não é pautada em teoria da História, mas tornou-se um conjunto dogmático de acontecimentos estabelecidos para introduzir os conhecimentos tradicionais do currículo. Ou seja, um conjunto de conhecimentos esclerosados feitos a partir de cópias de livro de História. Resultando num conhecimento velho e antiquado. Afinal (pensam eles) A História não muda!
O passado realmente passou, mas a
consciência do que se passou, isso muda de diversas formas. Refletindo em fatos
do nosso próprio cotidiano temos diversas perspectivas do que aconteceu em
nossa vida conforme o tempo passa. São as interpretações sobre “o que se
passou” que mudam. Para pensar nesse problema trazemos um conceito importante
de um autor contemporâneo chamado Jörn Rüsen. Para tal autor cada pessoa tem
uma “Consciência Histórica”. Isso faz com que as pessoas interpretem o
passado de maneira diferente.
“A consciência histórica é o trabalho
intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes
com a experiência do tempo. Este trabalho é efetuado na forma de interpretações
das experiências do tempo” Jörn Rüsen. Razão Histórica. Brasília:
Editora da UNB, 2001, p.59.
O amadurecimento da consciência
histórica de cada indivíduo o auxilia a desenvolver competências e habilidades
específicas do conhecimento histórico, tais como:
l
Percepção
diacrônica do tempo = capacidade de ordenar cronologicamente acontecimentos no
tempo histórico.
l
Percepção
sincrônica do tempo = capacidade de utilizar-se da experiênbcia histórica para
orientar a vida para o presente e futuro.
l
Capacidade de investigação = o trabalho com
fontes históricas auxilia o indivíduo a perceber discursos indiretos e detalhes
lógicos, também auxilia na argumentação.
l
Desenvolvimento cultural amplo = desde
atividades culturais estritas (como artes)
até conhecimentos gerais.
l
Perspectiva de multiplicidade de narrativa =
para o curso de Direito é importante que os alunos entendam que um mesmo fato
pode ser descrito por vários narradores de maneira diferenciada sem que,
necessariamente, uma das narrativas seja falsa.
RÜSEN, Jörn. o
desenvolvimento de a competencia narrativa en o aprendizaje historico. In: Revista PROPUESTA EDUCATIVA. Buenos
Aires: FLACSO, ano4, nº7, pp.27-36, outubro de 1992.
O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem
histórica. Uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral
Jorn
Rusen
A aprendizagem histórica pode se explicar como um processo
de mudança estrutural na consciência histórica. A aprendizagem histórica
implica muito mais que o simples adquirir de conhecimento do passado e a
expansão do mesmo.Visto como um processo pelo qual as
competências se adquirem progressivamente, emerge como um processo de mudança
de formas estruturais pelas quais tratamos e utilizamos a experiência e conhecimento
da realidade passada, passando de forma tradicionais de pensamento aos modos
genéticos.
Tradução
Ivan Furmann
1.
Uma narração, quatro versões
Um antigo
castelo se encontra nas terras altas de Escócia. É a residência ancestral dos
chefes do clã Maclean e está ainda na posse de um membro da família, quem vive
no castelo, observa sobre a muralha do castelo uma pedra com a gravação da
seguinte inscrição: "Se algum homem do clã Maclonish aparecer diante deste
castelo, ainda que venha a meia-noite, com a cabeça de um homem em sua mão,
encontrará aqui segurança e proteção contra tudo ".
O texto é de um
velho tratado celebrado em Highlands numa ocasião memorável. Num passado
distante, um dos antepassados de Maclean obteve do rei de Escócia uma concessão
de terras que pertenciam a outro clã porque aqueles haviam perdido tal
concessão por terem ofendido ao rei. Maclean, acompanhado de sua esposa,
avançou então com uma força armada de homens para tomar posse de suas novas
terras. No confrontamento e batalha com o outro clã, Maclean foi derrotado e
perdeu sua vida, e assim sua esposa, grávida, caiu nas mãos dos vencedores. O
chefe do clã vitorioso permitiu que a grávida, Lady Maclean, vivesse sobre a
custódia da família Maclonish com uma estipulação específica: se a criança que
nascesse fosse um menino, deveria ser morto imediatamente, se fosse uma menina,
se permitiria que vivesse. A esposa de Maclonish, que também estava grávida,
deu a luz uma menina quase que ao mesmo tempo em que Lady Maclean deu a luz a
um menino. Elas então trocaram as crianças.
O jovem Maclean
havendo sobrevivido por esta ardilosa sentença de morte que sobre ele pesava
antes de nascer, recuperou com o tempo seu patrimônio original. Em
agradecimento ao clã Maclonish designou então o seu castelo como lugar de
refúgio para qualquer membro daquela família que se encontrasse em perigo.
Esta narração
se encontra no livro Journey to the Western Islands of Scotland, de Samuel
Johnson, publicado pela primeira vez em 1775, e minha intenção neste trabalho é
utilizar esta historia para demonstrar a natureza da competência narrativa e
suas diversas formas. Além disso, a importância de tal competência para a
consciência moral. Para aproximarmos de uma maneira mais concreta, permita-nos
imaginar esta narração dentro do contexto de uma situação real em que se
desafiam os valores morais, e onde seu uso e legitimação requerem argumentos
baseados historicamente.
Imagine que
você é um membro do clã Maclean e que vive atualmente no castelo ancestral. Uma
noite escura, um membro do clã Maclonish – permita-nos chamá-lo de Ian – bate
em sua porta pedindo ajuda. A polícia o está seguindo – lhe conta – por causa
de um crime de cuja autoria o acusam. Como você reagiria? O ajudaria a se
esconder da policia ou decidiria por alguma outra forma de agir?
Imagine que um
amigo casualmente lhe visita naquela noite e, portanto, precisa lhe explicar o
que está acontecendo, pois este amigo não conhece a história dos clãs. Não
importa qual atitude você irá tomar em
relação a Ian Maclonish, você será obrigado a narrar a seu amigo o relato dos
bebês trocados, fazendo de tal forma que seu amigo compreenda a situação
(tornando-a interpretável) na qual você se encontra e a decisão que deverá
tomar.
Sua narração
desta lenda do clã provavelmente diferirá dependendo da natureza de sua
decisão. Além disso, sua decisão original depende em si mesma de sua
interpretação da antiga lenda do clã em relação às crianças trocadas.
Assiná-lo, para
tanto, a existência de quatro possibilidades principais para tal interpretação.
1. Você pode
esconder Ian Maclonish porque sente que existe uma obrigação de sua parte para
honrar o antigo acordo de Highland. Neste caso dirá a seu amigo que você – como
um Maclean – se sente obrigado a assistir Ian porque considera vigente a antiga
narrativa e então existem ainda laços entre os dois clãs. Você relata a lenda
dos bebês trocados, com a conclusão que esconderá Ian Maclonish da polícia,
para manter o antigo tratado entre os clã, renovando e continuando assim a
validez na relação entre os dois grupos.
2. Você pode
esconder Ian Maclonish, fazendo tal por uma multiplicidade de razões. Assim
pode contar a seu amigo que ajudou Ian, porque no passado um Maclonish uma vez
ajudou um membro do clã Maclean, e agora você se sente obrigado a atuar
reciprocamente sobre a base de um principio geral de reciprocidade de favores.
Ou pode dizer que o ajudou para cumprir a obrigatoriedade de um tratado entre
clãs, porque os tratados devem ser cumpridos, isto é, estão unidos pelo
tratado. Logo você lhe conta a lenda concluindo com a observação de que a ajuda
mútua ou a manutenção de um tratado entre clãs é, para você, um guia e um
princípio moral importante, como já foi provado quando o bebê foi salvo.
3. Você pode se
negar a esconder Ian Maclonish. Então primeiramente tem que explicar o pedido
de auxílio daquele, narrando o conto dos bebês e a pedra com a inscrição.
Porém, ao comentar a história irá
afirmar que não acredita nela, que é meramente um "mito" ou uma
"lenda" desprovida de qualquer evidência ou validade comprometedora,
e que não o obriga moralmente de nenhuma maneira. Também pode argumentar que
desde a introdução do direito inglês moderno, aqueles velhos tratados perderam
sua validade, que uma vez tiveram, e são agora letra morta. Neste caso, você
apresenta uma série ou combinação de argumentos histórico-críticos para
desfazer-se da obrigação de manter o antigo pato. Para tanto argumenta
historicamente para cortar qualquer laço de união entre você e o clã Maclonish,
o qual pode ter sido válido e obrigatório no passado.
4. Você pode
decidir-se por convencer Ian Maclonish de que é inútil esconder-se da policia e
que seria melhor para ele entregar-se às autoridades. Você, por sua vez,
promete fazer tudo o que puder por ajudá-lo, por exemplo, contratando ao melhor
advogado disponível. Neste caso, você narra o conto das crianças, porém o
circunscreve agregando o seguinte argumento: o sistema legal transformou-se
muito desde o direito do clã da era pré-moderna até a época moderna. Você ainda
se sente obrigado a ajudar alguém do clã Maclonish, porém deseja fazê-lo de uma
forma baseada em considerações modernas, e não como prescrevia o antigo pacto.
Esta narração
ancestral que nos fala dos Maclean, dos Maclonish e da troca dos bebês em
quatro versões, nos fornece o ponto de partida para meus argumentos, o conto
indica a necessidade da consciência histórica para tratar dos valores morais e
do raciocínio moral. Espero demonstrar que suas quatro variantes representam
quatro versões essenciais de consciência histórica, refletindo quatro etapas do
desenvolvimento através da aprendizagem.
2.
A relação entre a consciência histórica, os valores morais e o raciocínio
Na situação
representada em nossa narração devíamos decidir um curso de ação. Tal decisão
dependia de valores. Estes valores são geralmente princípios, guias de
comportamento, idéias ou perspectivas chaves que sugerem o que se deveria fazer
numa situação determinada aonde existem várias opções. Tais valores funcionam
como uma fonte de arbitragem nos conflitos e como objetivos que nos guiam ao
agir.
Que significado
tem apontar tais valores em termos morais? Nossas perspectivas demarcam nossas
ações sistematicamente, reconhecem a relação social dentro da qual vivemos e
devem decidir um curso de ação a ser
tomada. Elas expressam esta relação social como uma obrigação para nós,
dirigindo-nos, assim, até a essência de nossa subjetividade, recorrendo a nosso
sentido de responsabilidade e nossa consciência.
Como entra a
historia nesta relação moral entre nossa ação, nossa personalidade e nossas
orientações valorativas? A narração
esquematizada ao principio deste ensaio pode nos servir para proporcionar uma
resposta: quando se supõe que os valores morais guiam as ações que tomamos numa
situação dada, devemos relacionar os valores a essa situação, interpretar aos
mesmos e seu conteúdo moral com referência à realidade na qual os aplicamos e
avaliar a situação em termos de nosso código de valores morais aplicáveis. Para
essa mediação entre valores e realidade orientada pela ação, a consciência
histórica é um pré-requisito necessário. Sem tal consciência, não seríamos
capazes de entender porque Ian Maclonish nos pediu para escondê-lo da policia.
Sem tal consciência como pré-requisito para a ação, seríamos incapazes de
analisar a situação e chegar a uma decisão que resulte plausível para todas as
partes implicadas, – Ian, meu amigo que me visita, e eu como um Maclean –.
Entretanto, por
que tem que ser a consciência histórica um pré-requisito necessário para a
orientação numa situação presente que demanda ação? Depois de tudo, tal
consciência por definição aponta ainda para feitos no passado. A resposta
aponta que a consciência histórica funciona como um modo específico de
orientação em situações reais da vida presente: tem como função ajudar-nos a
compreender a realidade passada para compreender a realidade presente. Sem ter
narrado previamente a antiga historia dos bebês trocados, havia sido impossível
explicá-la a meu amigo visitante a "situação atual" e justificar – o
que quer dizer legitimar – minha decisão. Ademais, o poder explicativo da
narração serve para ensinar os traços gerais da situação não somente para quem
está de fora senão para mim mesmo, um homem do clã Maclean, e para alguma outra
parte implicada.
Então, o que é
especificamente "histórico" nesta explicação, nesta interpretação da
situação e em sua legitimação? O histórico está na orientação temporal, unindo
o passado e o presente de forma tal que confere uma perspectiva futura da
realidade atual. Isto implica que a referencia ao tempo futuro está contida na
interpretação histórica do presente, já que essa interpretação deve
permitir-nos atuar – ou seja, deve facilitar a direção de nossas intenções
dentro de uma matriz temporal – Quando dizemos que nos sentimos compelidos ou
obrigados pelo antigo tratado, definimos una perspectiva futura em nossa
relação até ao clã Maclonish. O mesmo é verdade em relação a todas as outras
explicações e legitimações históricas associadas a nossa decisão.
Desejo extrair
do exemplo narrativo dado uma característica geral da consciência histórica e
sua função na vida prática.2 A consciência histórica serve como um elemento
orientativo chave, dando a vida prática um marco e uma matriz temporal, uma concepção
do “curso do tempo” que flui através dos assuntos mundanos da vida diária. Essa
concepção funciona como um elemento nas intenções que guiam a atividade humana,
nosso curso de ação. A consciência histórica evoca ao passado como um espelho
da experiência no qual se reflete a vida presente e suas características
temporais são, assim mesmo, reveladas.
Afirmando
suscintamente, a historia é o espelho da realidade passada no qual o presente
aponta para aprender algo acerca de seu futuro. A consciência histórica deve
ser conceituada como uma operação do intelecto humano para aprender algo neste
sentido. A consciência histórica trata do passado como experiência, nos revela
o tecido da mudança temporal dentro do qual estão amarradas nossas vidas, e as
perspectivas futuras até as quais se dirige a mudança. Em palavras de
Shakespeare: “Como o destino se engana, e as mudanças chegam ao topo da
transformação, com diversos sabores”.3
A historia é um
nexo significativo entre o passado, o presente e o futuro – não meramente uma
perspectiva do que aconteceu, “wie es eighntlich gewesen” – é uma tradução do
passado ao presente, uma interpretação da mudança temporal que abarca ao
passado, ao presente e a expectativa de acontecimentos futuros. Esta concepção
amolda os valores morais a um “corpo temporal” (por exemplo, o corpo da
validade contínua de um antigo tratado), a historia reviste aos valores da
experiência temporal. A consciência histórica transforma os valores morais em
totalidades temporais: tradições, conceitos de desenvolvimento ou outras formas
de compreensão do tempo. Os valores e as experiências estão mediatizadas e
sintetizadas em tais concepções de mudança temporal.
É assim que a
consciência histórica de um membro contemporâneo do clã Maclean pode traduzir a
idéia moral pela qual os tratados são obrigatórios e devem ser cumpridos na
forma concreta de um acordo presente válido mais além do tempo. A consciência
história amalgama “ser” e “dever” numa narração significante que refere
acontecimentos passados com o objeto para fazer-se inteligível no presente e
conferir uma perspectiva futura a essa atividade atual. Desta forma, a
consciência histórica faz uma contribuição essencial à consciência ética-moral.
Os procedimentos criativos da consciência histórica são necessários para os
valores morais e o raciocínio moral, como se a plausibilidade dos valores
morais estivessem em perigo. Aqui a referencia não se dirige justamente até a
plausibilidade lógica dos valores (em relação a sua coerência, por exemplo),
senão melhor, até a plausibilidade no sentido de que os valores devem ter uma
relação aceitável com a realidade.
A consciência
histórica tem uma função prática:4 confere a realidade uma direção temporal,
uma orientação que pode guiar a ação intencionalmente, através da mediação da
memória histórica. Pode-se chamar a essa função “orientação temporal”. Essa
orientação tem lugar em duas esferas da vida concernentes: a) a vida prática e;
b) a subjetividade interna dos atores. A
orientação temporal da vida teme dois aspectos, um interno e outro
externo. O aspecto externo da orientação pelo caminho da historia revela a
dimensão temporal da vida prática, descobrindo a temporalidade nas
circunstâncias marcadas pela atividade humana. O aspecto interno da orientação
pelo caminho da historia revela a dimensão temporal da subjetividade humana,
outorgando auto-compreensão e conhecimento das características temporais dentro
das quais aqueles tomam a forma de identidade histórica, ou seja, uma
consistência constitutiva das dimensões temporais da personalidade humana.
Por meio da
identidade histórica a personalidade humana expande sua extensão temporal mais
além dos limites do nascimento e da morte, para além da mera mortalidade.
Através desta consciência histórica, uma pessoa se torna parte de um todo
temporal mais extenso que o de sua vida temporal.
Assim, então, o
rol de um membro atual do clã Maclean pressupõe uma identidade familiar
histórica que se pode rastrear no antigo período de batalhas entre clãs pela
concessão real de um território. Dando hoje assistência a Ian Maclonish,
afirmamos esta identidade, que significa ser um Maclean com respeito ao futuro,
um exemplo mais familiar de tal “imortalidade temporal” (assim pode ser
caracterizada a identidade histórica) é a identidade nacional. As nações
freqüentemente localizam suas origens num passado imemorial e antigo, e
projetam uma perspectiva de futuro ilimitado que engloba a própria afirmação do
desenvolvimento nacional.
3.
A competência narrativa da consciência histórica
A forma
lingüística dentro da qual a consciência histórica realiza sua função de
orientação é a da narração. A partir desta visão, as operações pelas quais a
mente humana realiza a síntese histórica das dimensiones do tempo
simultaneamente com as do valor e a experiência, se encontram na narração: o
relato de uma história.5 Uma vez esclarecidas a forma narrativa dos
procedimentos da consciência histórica e sua função como meio de orientação
temporal, é possível caracterizar a competência específica e essencial da
consciência histórica e sua função como meio de orientação temporal, é possível
caracterizar a competência específica e essencial da consciência histórica como
“competência narrativa”.6 Essa competência pode definir-se como a
habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos que dão
sentido ao passado, fazendo afetiva uma orientação temporal na vida prática
presente por meio da recordação da realidade passada. Esta competência geral
relativa a “dar sentido ao passado” pode definir-se em termos dos três
elementos que constituem juntos uma narração histórica: forma, conteúdo e
função. Em relação ao conteúdo, se pode falar de “competência para a
experiência histórica”; em relação à forma, de “competência para a
interpretação histórica”; e em relação à função, de “competência para a
orientação histórica”.
a) A
consciência histórica se caracteriza pela "competência de
experiência". Esta competencia supõe uma habilidade para ter experiências
temporais. Implica na capacidade de "aprender a observar o passado e
resgatar sua qualidade temporal, diferenciando-o do presente. Uma forma mais
elaborada de tal competência é a "sensibilidade histórica". Em
relação a nossa narrativa, é a competência para entender a pedra na muralha do
castelo Maclean e a necessidade de prestar atenção à inscrição, e dizer, que
contém informação importante para os membros da família Maclean.
b) A
consciência histórica se caracteriza
posteriormente pela "competência de interpretação". Esta
competência é a habilidade para diminuir diferenças de tempo entre o passado, o
presente e o futuro através de uma concepção de todo temporal significante que
abarque todas as dimensiones do tempo. A temporalidade da vida humana funciona
como um instrumento principal desta interpretação, desta tradução de
experiências da realidade passada a uma compreensão do presente e a
expectativas em relação ao futuro. Essa concepção se fala na essência da
atividade significante-criativa da consciência histórica. É a fundamental
"filosofia da historia" ativa dentro das atividades
significante-criativas da consciência histórica, que marca todo pensamento
histórico.
Em relação a
nossa narrativa, implica na competência para integrar o acontecimento da troca
dos bebês num conceito de tempo que une aquele antigo período com o presente,
dando-lhe a este complexo uma significação de peso histórico para os Maclean em
sua relação com os Maclonish. Essa concepção pode ser materializada na noção da
validade indestrutível do tratado, ou na evolução do direito de uma forma
pré-moderna a sua manifestação moderna.
c) A
consciência histórica, finalmente, se caracteriza pela "competência de
orientação". Esta competência supõe ser capaz de utilizar o todo temporal,
com seu conteúdo de experiência, para os propósitos de orientação da vida.
Implica guiar a ação, por meio das noções de mudança temporal, articulando a
identidade humana com o conhecimento histórico, inter-relacionando a identidade
no enredo e na própria trama concreta do conhecimento histórico. Em relação à
narrativa de Highlands, supõe a habilidade para utilizar a interpretação do
tratado para analisar a situação presente e determinar um curso de ação, ou
seja, decidir se se vai esconder Ian ou não, ou vai assistir-lhe de qualquer
outra forma, e legitimar esta decisão – em cada instância usando uma
"razão histórica adequada" – relativa a identidade de um membro do
clã Maclean.
4.
Quatro tipos de consciência histórica
No capítulo
anterior, intentou-se explicar as operações básicas da consciência histórica,
sua relação com a consciência moral e suas principais competências. A seção
final deste escrito trata da questão do desenvolvimento.
As diferentes
teorias sobre o desenvolvimento da consciência moral elaboradas e empiricamente
confirmadas por pensadores como Piaget, Kohlberg e outros, são habituais na
literatura sobre desenvolvimento cognitivo. Minha intenção aqui é propor uma
teoria análoga de desenvolvimento concernente à realidade moral e sua atividade
através de um ato narrativo: o relato de uma historia acerca dos feitos
passados.
Para descobrir
as etapas do desenvolvimento estrutural na consciência histórica, é necessário,
antes de tudo, distinguir as estruturas básicas dentro dos processos
concernentes a construção do sentido histórico do passado. Proponho explicar
estas estruturas básicas na forma de uma tipologia geral do pensamento
histórico. Esta tipologia abarca conceitualmente o campo completo de suas
manifestações empíricas, e para tanto pode utilizar-se para o trabalho
comparativo na historiografia incluindo comparações inter-culturais.8
A tipologia já
está implícita nos quatro modos diferentes de argumentação histórica ja
referidos brevemente em relação ao pedido de Ian Maclonish para esconder-se da
polícia. Qual é então o significado tipológico destes quatro modos?
Meu ponto de
partida é a função da narração histórica. Como já se mencionou, essa narração
tem a função geral de servir para orientar a vida prática no tempo. Mobiliza a
memória da experiência temporal, desenvolvendo a noção de um todo temporal
abarcativo, e confere uma perspectiva temporal interna e externa a vida
prática.
A consciência
histórica realiza esta função geral de quatro formas diferentes, baseadas em
quatro princípios distintos para a orientação temporal da vida: a) a afirmação
das orientações dadas, b) a regularidade dos modelos culturais e de vida
(Lebensformen), c) a negação e d) a transformação dos modelos de orientação
temática. Todos estes são trazidos através da mediação da memória histórica.
Há seis
elementos e fatores da consciência histórica através dos quais se podem
descobrir estes tipos: 1. seu conteúdo, ou seja a experiência dominante do
tempo, trazida desde o passado; 2. As formas de significação histórica, ou as
de totalidades temporais; 3. o modo de orientação externa, especialmente em
relação as formas comunicativas de vida social; 4. o modo de orientação
interna, particularmente em relação a identidade histórica como a essência da
historicidade no conhecimento da personalidade humana e a auto-compreensão; 5.
a relação da orientação histórica com os valores morais; e 6. sua relação com o
raciocínio moral (Ver tabela 1).
Esquema
da tipologia
a)O
tipo tradicional
As tradições
são elementos indispensáveis de orientação dentro da vida prática, e sua
negação total conduz a um sentimento de desorientação massiva. A consciência
histórica funciona em parte para manter vivas essas tradições.
Quando a
consciência histórica nos provê de tradições, nos faz recordar as origens e a
repetição de obrigações, fazendo-o na forma de sucessos passados de concreção
fática que demonstram o atributo de validade e obrigatoriedade dos valores e
dos sistemas de valores. Tal é o caso quando, por exemplo, em nosso rol de
membros do clã Maclean, sentimos um laço de obrigação até um antigo tratado.
Em tal
aproximação, tanto nossa interpretação do que ocorreu no passado, como nossa
justificação para esconder a Ian Maclonish com "tradições". Alguns
outros exemplos dessa "tradição" são os discursos comemorativos
públicos, os monumentos públicos, incluindo as historias privadas narradas
entre as pessoas com o propósito de conformar sua relação pessoal. Assim, tanto
você como sua esposa estaram "apaixonados" na narração que descreve
como chegaram a apaixonar-se – se por certo vocês ainda se amam–.
As orientações
tradicionais apresentam a totalidade temporal que faz significante ao passado e
relevante a realidade presente e a sua extensão futura como uma continuidade
dos modelos de vida e dos modelos culturais prescritos mais além do tempo.
As orientações
tradicionais guiam externamente a vida humana por meio de uma afirmação das
obrigações que requerem consentimento. Essas orientações tradicionais definem a
"unidade" dos grupos sociais ou das sociedades em seu conjunto, desta
forma mantendo o sentimento de uma origem comum.
Em relação à
orientação interna, essas tradições definem a identidade histórica, a afirmação
dos modelos culturais pré-determinados de autoconfiança e autocompreensão.
Marcam a formação da identidade como um processo no qual se assumem e se atuam
os papéis. A orientação histórica tradicional define a moral corno tradição. As
tradições expressam a moral como uma estabilidade inquestionada de
Lebensformen, de modelos de vida e modelos culturais mais além do tempo e de
suas vicissitudes.
Em relação ao
raciocínio moral, as tradições são razões que mantém e apontam a obrigação
moral dos valores. Se a vida prática se orienta predominantemente em termos de
tradições, a razão que molda aos valores se encontra na permanência de
surrealidade na vida social, uma permanência que a historia ajuda atrair a
nossa memória.
b)
o tipo exemplar
Não são as
tradições as que utilizamos aqui como argumento, senão também as regras. A
história das lutas entre os clãs e a troca dos bebês exemplifica aqui uma regra
geral atemporal: nos ensina qual curso de ação tomar e qual devemos evitar
tomar.
Aqui a
consciência histórica se refere a experiência do passado na forma de casos que
representam e personificam regras gerais de mudança temporal e a conduta
humana. O horizonte da experiência temporal se encontra expandida de forma
significante neste modo de pensamento histórico. A tradição se move dentro de
um marco de referência empírica bastante estreito, porém a memória histórica
estruturada em termos de exemplos está aberta para processos num número
infinito de acontecimentos passados, desde o momento em que estes não possuem
relação com uma idéia abstrata de mudança temporal e de a conduta humana,
válido para todo o tempo, ou ao menos cuja validade não está limitada a um
acontecimento específico.
O modelo de
significação que nos concerne aqui tem a forma de regras atemporais. Nesta
concepção se vê a história como uma recordação do passado, como uma mensagem ou
lição para o presente como algo didático: historiae vitae maestrae é um
aforismo tradicional na tradição historiográfica ocidental.9 Ela nos
ensina as normas, sua derivação de casos específicos, e sua aplicação.
O modo de
orientação realizado pela consciência histórica neste tipo de exemplo está
enfocado pela regra: implica a aplicação de regras provadas e derivadas
historicamente a situações atuais. Muitos exemplos clássicos da historiografia
numa variedade de culturas diversas refletem este tipo de significação
histórica. Na antiga tradição chinesa, o melhor exemplo é o clássico de
Suma-Kuang, Tzu-chih t'ung-chien (Um espelho para o governo). Seu próprio
título indica como concebe o passado como exemplo: a moral política se ensina
na forma de casos de governo que tiveram êxito ou foram sucumbidos.
Em relação a
orientação interna da vida, o pensamento histórico exemplar relaciona os papéis
da vida a as regras e princípios, e tem como função legitimar tais papéis
através do raciocínio abstrato. A identidade histórica é o marco dado de
prudência (prudentia). Sua matéria é a competência dada para derivar regras
gerais de casos específicos e aplicá-los a outros casos. Procedendo deste modo,
tal forma de consciência histórica faz
uma contribuição significante ao raciocínio moral. O pensamento histórico
exemplar revela a moralidade de um valor ou de um sistema de valores,
culturalmente materializados na vida social e pessoal, através da demonstração
de sua generalidade, ou seja, que tem uma validade que se estende a uma gama de
situações. Conceitua-se a moral como possuindo validade atemporal.
A contribuição
deste modo de interpretação histórica ao raciocínio moral é claro: a história
enseja o argumento moral por meio dela aplicação de princípios a situações
concretas e específicas – tais como um golpe na porta por um membro do clã
Maclonish ao cair a noite –.
c)
o tipo crítico
O argumento
decisivo na versão crítica de nossa narrativa é que como um membro do clã
Maclean, nós não sentimos obrigação alguma frente ao suposto atributo de
"obrigatório". Para nós, é um velho conto que perdeu toda relevância
para a ação presente e a realidade. Sem embargo isto não é automaticamente
assim: como um Maclean, somos de certo modo parte desta historia, a antiga
pedra contém certamente sua inscrição na muralha. Assim, devemos desacreditar a
história se não desejamos ajudar Ian em sua desgraça. Devemos apresentar uma
nova interpretação que – por meio do raciocínio histórico – negue a validade do
tratado.
A maneira mais
fácil é declarar que o conto é falso. Para ser convincente, devemos reunir a
evidência e ela requer que nos voltemos à argumentação histórica crítica
estabelecendo que é plausível o litígio, no entanto, não existem razões
históricas que poderiam motivar-nos a oferecer ajuda Ian Maclonish.
Podemos
desenvolver uma crítica ideológica, afirmando que houve uma astúcia no meio de
tudo: uma armadilha dos Maclonish para manter as Maclean numa espécie de
dependência moral sobre eles. Podemos argumentar também que naquele antigo
período, estava proibido assassinar bebês, que é o motivo central sobre o qual
gira a história. Tal argumentação se baseia em oferecer elementos de uma
"contra-narrativa" a aquela gravada na pedra. Por meio dessa
"contra-narrativa" podemos desmascarar uma história determinada como
um engano, desprestigiá-la como una informação falsa. Podemos argumentar também
de outra forma, afirmando que o tratado gravado na pedra perdeu sua validade
atual, desde o momento em que novas formas de direito tem emergido desde então.
Logo podemos narrar uma "contra história" breve, por exemplo, a
historia de como as leis têm mudado com o passar do tempo.
Quais são as
características gerais de tal modo de interpretação histórica? Aqui a
consciência histórica busca e mobiliza uma classe específica de experiência do
passado: a evidência prevista pelas "contra-narrações", desvios que
se fazem problemáticos aos sistemas de valores presentes e aos Lebensformen.
O conceito de
uma totalidade temporal abarcativa que inclui o passado, o presente e o futuro
volta-se, neste modo, como algo negativo: a noção de uma ruptura na permanência
da continuidade operativa da consciência. A história funciona como a ferramenta
com que se rompe, "se destrói", se decifra tal continuidade – para
que se perda seu poder como fonte de orientação no presente –.
As narrativas
deste tipo formulam pontos de vista históricos, demarcando-os, distinguindo-os
das orientações históricas sustentadas por outros. Por meio dessas histórias
críticas dizemos não as orientações temporais predeterminadas de nossa vida.
Em relação a
nós e a nossa própria identidade histórica, tais histórias críticas expressam
uma negatividade; o que não queremos ser. Nos proporcionam uma oportunidade
para definir como não enredarmos em papéis e formas prescritas, predefinidas de
autocompreensão. O pensamento histórico-crítico despeja o caminho até a
constituição da identidade pela força da negação.
Sua
contribuição aos valores morais se inicia em sua crítica aos valores. Desafia a
moral apresentando o seu contrário. As narrativas críticas confrontam os
valores morais com a evidência histórica de suas origens ou conseqüências
imorais. Por exemplo, as feministas modernas criticam o princípio da
universalidade moral. Alegam que ele nos leva a considerar a natureza do
"outro" nas relações sociais a favor de uma universalização abstrata
dos valores como condição suficiente de sua moralidade. Afirmam que tal
"universalização" é completamente parcial e ideológica, servindo para
estabelecer a regra do masculino como a norma humana geral, fazendo caso omisso
da singularidade através do gênero do homem e da mulher como condição
necessária da humanidade.10
O pensamento
histórico-crítico injeta elementos de argumentação crítica ao raciocínio moral.
Colocam em questão a moral apontando a relatividade cultural nos valores, que
contrasta com uma universalidade suposta e aparente, descobrindo os fatores de
condição temporal que contrasta com uma validade atemporal falsa. Confronta os
reclames de validade com a evidência baseada na mudança temporal: o relativo
poder das condições e conseqüências históricas. Em sua variante mais elaborada,
apresenta ao raciocínio moral como uma crítica ideológica da moral. Dos
exemplos clássicos de tal empresa são a crítica de Marx dos valores burgueses11
e a Genealogia da Moral de Nietzsche.12
d)
o tipo genético
No centro dos
procedimentos para dar sentido ao passado se encontra em si mesmo a mudança.
Nesta estrutura, nosso argumento é que "as coisas mudam": nos opomos
assim a opção de esconder Ian devido a razões tradicionais ou exemplares e a
opção de negar criticamente a obrigação que impõe esta velha história como uma
razão para não ocultá-lo. Pelo contrário, aceitamos a história, porém a
colocamos numa estrutura de interpretação dentro da qual o tipo de obrigação
até os acontecimentos passados tem mudado em si mesmo de uma forma pré-moderna
até uma forma moderna de moral. Aqui a mudança é a essência do que dá sentido a
historia. Assim o velho tratado perdeu sua validade primeira e tornou-se uma
nova; em conseqüência, nosso comportamento necessariamente difere agora do que
se defendia que teria sido no passado distante: constrói-se dentro de um
processo de desenvolvimento dinâmico.
Portanto
elegemos ajudar Ian Maclonish, porém de maneira diferente a prefigurada no
tratado preservado na pedra da muralha de nosso castelo. Permitimos que a
história se reduza a parte do passado; sem embargo, ao mesmo tempo, lhe
concedemos outro futuro. É a mudança propriamente o que dá sentido a história.
A mudança temporal se despoja de seu aspecto amenizante, e se transforma no
caminho no qual estão abertas as opções para que a atividade humana creia num
novo mundo. O futuro supera, sobrepuja efetivamente ao passado no seu direito
sobre o presente, um presente conceituado como uma intersecção, uma nudez intensamente
temporal, uma transição dinâmica. Esta é a forma quintaessencial de uma espécie
de pensamento histórico moderno marcado pela "alegoria de progresso”,
embora tenha sido arremessado até uma dúvida radical pelas intimações da
pós-modernidade, pensadas por certo segmento da elite intelectual
contemporânea.
Neste modelo a
memória histórica prefere representar a experiência da realidade passada como
acontecimentos alternantes, nos quais as formas de vida e de cultura alojadas
evoluem em configurações "modernas" mais positivas.
Aqui a forma
dominante de significação histórica é a do desenvolvimento, onde as formas
mudam na ordem, paradoxalmente, para manter seu próprio desenvolvimento. Assim
a permanência toma uma temporalidade interna, tornando-se dinâmica. Pelo
contrario, a permanência através de a tradição, pela regras atemporais
exemplares, pela negação crítica, – isto é, a ruptura da continuidade – são
todas em essência de natureza estática.
Esta forma de
pensamento histórico vê a vida social em toda a abundante complexidade de sua
temporalidade absoluta.
Diferentes
pautas de vista podem ser aceitos porque se integram numa perspectiva
abarcativa de mudança temporal. Retornando a nossa narrativa, nós como o
moderno Maclean ansioso de persuadir ao moderno Maclonish de que seria mais
sábio para ele entregar-se a polícia, e então aceitar nossa ajuda. Suas
expectativas e nossa reação devem cruzar-se. E cremos que essa intersecção é
parte da interpretação histórica dentro da qual tratamos a situação atual. Este
reconhecimento mútuo é parte da perspectiva futura que derivamos do passado
através de nossa decisão no presente, não para oferecer a ele refúgio, senão
para ajudá-lo de uma maneira que cremos é mais acorde com a voz de nossa época:
"Conheço um bom advogado".
Em relação a
nossa autocompreensão e autoconfiança, este tipo de consciência histórica
permeia a identidade histórica com uma temporalização essencial. Nos definimos
estando num ponto crucial, uma superfície de contato de tempo e feitos,
permanentemente em transição. Para seguir sendo o que somos, para não evoluir e
mudar, se nos parece como um modo de autodestruição, uma ameaça a nossa
identidade.13 Nossa identidade está em nossa incessante mudança.
Dentro do
horizonte desta classe de consciência histórica, os valores morais se
temporalizam, a moral se despoja de sua natureza estática. O desenvolvimento e
a mudança pertencem a moral dos valores conceituada em termos de uma
pluralidade de pontos de vista e a aceitação da concreta característica do
"outro", do não semelhante, e a mútua aceitação daquele “outro",
como a noção dominante de valoração moral.
De acordo com
esta temporalização como um princípio, o raciocínio moral depende aqui
essencialmente do argumento da mudança temporal como necessária ou decisiva
para estabelecer a validade dos valores morais. Portanto, um pode mover-se
desde a etapa final no esquema kohlbergiano do desenvolvimento da consciência
moral até o estágio mais avançado: os princípios morais incluem sua
transformação dentro de um processo de comunicação. É aqui onde eles se
realizam concretamente e individualmente, engendrando diferenças; estas por sua
vez ativam procedimentos de reconhecimento mútuo, alterando a forma moral
original. Uma fascinante ilustração deste estado de argumentação moral, que não
se pode elaborar no contexto deste ensaio, é o exemplo de relaciones entre os
sexos. A idéia dos Direitos Humanos Universais é outro exemplo claro que
demonstra a plausibilidade desta forma genética de argumentação em relação aos
valores morais.14
Esta Tipologia
se entende como uma ferramenta metodológica e heurística para a investigação
comparativa. Na medida em que a moral está conectada com a consciência
histórica, podemos usar esta matriz tipológica para ajudar a categorizar e
caracterizar as peculiaridades culturais e os traços únicos dos valores morais
e os modos de raciocínio moral em diferentes épocas e cenários. Desde o momento
em que os elementos dos quatro tipos estão operativamente mesclados no processo
que da a vida prática uma orientação histórica no tempo, podemos reconstruir as
complexas relaciones entre estes elementos para determinar com precisão e
definir especialidade estrutural das manifestações empíricas da consciência
histórica e sua relação com os valores morais.15
(...)
QUADRO 1 - OS QUATRO TIPOS DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
TRADICIONAL
|
EXEMPLAR
|
CRÍTICA
|
GENÉTICA
|
|
Experiência do
Tempo
|
Origem e
repetição de um modelo cultural e de vida obrigatório.
|
Variedade de
casos representativos de regras gerais de conduta ou sistemas de valores.
|
Desvios
problematizados dos modelos culturais e de vida atuais.
|
Transformações
dos modelos culturais e de vida alheios em outros próprios e aceitáveis.
|
Formas de
significação histórica.
|
Permanência dos
modelos culturais e de vida na mudança temporal.
|
Regras
atemporais de vida social. Valores atemporais.
|
Ruptura das
totalidades temporais por negação de sua validade.
|
Desenvolvimentos
nos que os modelos culturais e de vida mudam para manter sua permanência.
|
Orientação da vida exterior.
|
Afirmação das
ordens pré- estabelecidas de acordo com contorno de modelo de vida comum e
válida para todos.
|
Relação de
situações particulares com regularidades
que aludem ao
passado e ao
futuro.
|
Delimitação do
ponto de vista próprio frente às obrigações pré-estabelecidas.
|
Aceitação de
distintos pontos de vista numa perspectiva abarcativa do desenvolvimento
comum.
|
Orientação da
vida interior.
|
Sistematização
dos modelos culturais e de vida por imitação – papel-típico–.
|
Relação de
conceitos próprios a regras e princípios gerais. –Legitimação do rol por
generalização –.
|
Autoconfiança
na refutação de obrigações externas – papel-típico–.
|
Mudança e transformação dos conceitos próprios como
condições necessárias para a permanência e a autoconfiança. Equilíbrio de
papéis.
|
Relação
com os valores morais.
|
A moralidade é
um conceito pré-estabelecido de ordens obrigatórias; a validade moral é inquestionável:
Estabilidade
por tradição.
|
A moralidade é
a generalidade da obrigação
dos valores e dos sistemas de valores.
|
Ruptura do
poder moral dos valores pela negação de sua validade.
|
Temporalização
da moralidade. As possibilidades de um desenvolvimento posterior se converte
numa condição de moralidade.
|
Relação com o
raciocínio moral.
|
A razão
subjacente aos valores é um suposto efetivo que permite o consenso sobre questões morais.
|
Argumentação
por generalização, referência a regularidades e princípios.
|
Crítica dos
valores e da ideologia como estratégia do discurso moral.
|
A mudança
temporal se converte num elemento decisivo para a validez dos valores morais.
|
Para que serve o conhecimento
histórico?
Texto 1
A destruição do passado
- ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à
das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do
final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de
presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época
em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros
esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio.
HOBSBAWM, Eric. Era dos
extremos O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 13.
Texto 2
Nada do que é humano
será agora alheio ao historiador. Daí a multiplicação de estudos sobre a
cultura, os sentimentos, as idéias, as mentalidades, o imaginário, o cotidiano.
E também sobre instituições e fenômenos sociais antes considerados de pequena
importância, se não irrelevantes, como o casamento, a família, organizações políticas
e profissionais, igrejas, etnias, a doença, a velhice, a infância, a educação,
as festas e rituais, os movimentos populares.
CARVALHO, José Murilo.
Pontos e bordados - escritos de hist6ria e política. BH: UFMG, 1998. p. 454.
Texto 3
A construção de uma
memória social, mais precisamente nacional, era a finalidade essencial do
ensino da História. A construção de uma memória social é hoje tão indispensável
quanto antigamente, mesmo porque ela é um elemento essencial da
"identidade social" invocada. A escola e, mais precisamente, o ensino
de História têm um papel importante neste domínio. Toda a questão está em saber
qual memória social deve-se desenvolver hoje.
Além da memória
nacional, outras memórias coletivas podem ser desenvolvidas. A memória familiar
é a primeira memória coletiva em que o indivíduo se insere. Cada família tem
uma memória marcada pela narrativa da vida de seus membros, pelos
acontecimentos, pelas tradições, pelos sistemas de valores. É esse conjunto que
constitui sua memória, transmitida de geração a geração, principalmente pela
oralidade, mas também pelos documentos escritos, pelas imagens, como as
fotografias, e pelos lugares. Essa memória coletiva está, evidentemente,
relacionada com a das outras famílias, a dos outros grupos, a das outras
instituições e com a da sociedade global.
Mas ela tem sua
particularidade, que constitui sua identidade própria. Ao lado dessa memória
familiar, existe a memória do trabalho. Trata-se de uma memória em que os
lugares possuem grande importância. Ela pode constituir-se com uma longa
duração, composta de modos de vida, saberes, técnicas e gestos. Todos os
trabalhos possuem sua memória, desde os trabalhos artesanais do passado aos
trabalhos mais modernos do presente. Uma outra memória coletiva mais ampla é a
memória religiosa, que pode ser aplicada ao cristianismo e às outras religiões.
Essas e outras memórias
coletivas impregnam cada indivíduo e tecem as relações com os outros. A memória
social não se inscreve de maneira forçada sobre um território, como a memória
nacional. É assim que se pode apelar a uma memória da humanidade, esse
sentimento mais ou menos confuso que nos une numa cadeia aos homens que nos
precederam. Trata-se de fazer a criança compreender que ela faz parte de uma
longa cadeia. Essa é a primeira apreensão do tempo da história, da história de
outras épocas, o primeiro quadro de uma memória social aberta sobre o mundo.
VOGLER, Jean. Pourquoi enseigner l'histotre à l'école? Paris: Hachette, 1999.
p. 6-14.
Texto 4
Os textos oficiais atuais
na França atribuem ao ensino da História quatro fmalidades, divididas em dois
grandes conjuntos: cultural e intelectual, patrimonial e cívica.
As finalidades culturais
- distribuir um saber
A História, tal qual é
ensinada, deve, acima de tudo, transmitir um saber científico, que representa
uma espécie de "cultura histórica". [...] Esse saber histórico
transmitido pelo professor é composto tanto por conhecimentos como por métodos.
Por conhecimentos entende-se um conjunto de informações (datas, fatos, nomes e
lugares, por exemplo), e também as noções (crises, crenças, revoluções e
ciclos) que constituem a linguagem da História. Por métodos entendem-se os
procedimentos que permitem a leitura dessa linguagem. Essa grade de leitura é
formada por diferentes objetivos (identificar, classificar, problematizar,
esquematizar, descobrir as causalidades, medir o tempo, entre outros). As
regras que regem a exploração dos documentos do historiador (textos, imagens,
mapas e gráficos, por exemplo) também fazem parte da grade.
As finalidades
intelectuais - desenvolver o espírito crítico
O ensino da História
participa também da formação intelectual mais geral, que consiste em formar e
exercer o espírito critico. [...] Trata-se de habituar o aluno a levar em
consideração o caráter relativo das sociedades humanas, segundo seu lugar e sua
época, assim como apreender sua complexidade e sua diversidade. [...] Essa
formação é possível porque o ensino da História permite, ao aluno, compreender
o passado e organizá-Io em ordem cronológica, e também porque ela possibilita,
ao mesmo tempo, que ele se inscreva, ativamente, num mundo contemporâneo,
tomado inteligível a despeito de sua complexidade. O ensino da História supera
a simples dimensão cultural (a transmissão de um saber) para adquirir uma
dimensão intelectual (o exercício da razão critica). Essa dimensão é
privilegiada no sistema educativo hoje.
As finalidades
patrimoniais - transmitir a memória coletiva fundadora da identidade
Ensinar História é,
também, dar aos alunos uma memória comum, que passa pelo reconhecimento de uma
cultura, em que a apropriação é fundadora da identidade do cidadão esclarecido.
Assim, o ensino da História deve permitir ao aluno descobrir o patrimônio comum
em que ele se insere e do qual é herdeiro, conservá-Io e enriquecê-Io para
melhor transmiti-lo às novas gerações.
A finalidade cívica - formar
um cidadão responsável e ativo
Essa dimensão cívica
está, acima de tudo, ligada à dimensão patrimonial. A história é doadora de uma
memória aos alunos, o que permite, ao mesmo tempo, que eles se apropriem de um
patrimônio gerador de identidade. [...] A formação de um cidadão esclarecido
repousa sobre a apropriação de uma cultura comum e criadora de identidade,
concedendo, aos alunos, uma melhor compreensão do mundo contemporâneo de que
eles são herdeiros [...]. Trata-se, acima de tudo, de permitir ao aluno
desempenhar um papel ativo na sociedade, como cidadão responsável, consciente
de seus direitos e deveres e assumindo suas responsabilidades. Ao redor dessa missão
essencial, agregam-se noções antigas, como o respeito à laicidade do Estado e
às liberdades religiosas, ou outras mais recentes, como a fonte da preservação
da convivência. [...] [...] O que importa compreender, aqui, é a coerência
dessas finalidades, estreitamente imbricadas. O aluno não poderá se integrar
plenamente na cultura da cidade se não se apropriar da herança histórica que
estrutura e funda essa mesma cidade. O ensino da História, que supõe a difusão
de referências culturais e representações sociais é necessariamente
constitutivo de identidades. Essa dimensão "ideológica" do ensino não
é inquietante, mas é preciso apreciar sua natureza e dimensionar seus limites e
suas possibilidades. Trata-se de transmitir uma memória coletiva, alimentadora do
passado e de inculcar as representações sociais legítimas (de fato aquelas que
fundam o estado de direito, republicano e democrático). Os alunos (qualquer que
seja sua origem) poderão, assim, adquirir referências constitutivas de um
sentimento de pertencimento a uma sociedade ou a uma nação e, ao mesmo tempo,
inserir-se (assumindo-a) numa consciência coletiva.
Esse sentimento de
pertencimento e essa inserção são necessários porque a consciência coletiva
participa de um "dever de memória" que a História integra, numa
"comunidade de memória", àqueles que são objeto de seu ensino. [...]
AUDIGIER, François et aI.
L'épreuve sur dossier au CAPES d'bistoire-geograpbie - Théorie et sujets
corrigés. Paris: Seli Arslan,
2001. p. 106-14.
Textos
extraídos de: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. (pp. 18-22)
Exercícios
1) Qual a opinião dos historiadores acerca das finalidades
do ensino da História? Descreva-as.
2) Para que serve o ensino de História no curso de Matemática?
Opine
3) Lendo o texto de Jörn Rüsen, você acredita que sua
consciência histórica está próxima de qual “tipo ideal”? Explique.