As teses sobre o conceito da História de Walter
Benjamin
Walter
Benedix Schönflies Benjamin (Berlim, 15 de julho de 1892 — Portbou, 27 de
setembro de 1940) foi um crítico literário e ensaísta alemão. Foi refugiado
judeu alemão, diante da perspectiva de ser capturado pelos nazistas, escolheu o
suicídio.
Biografia: Walter Benjamin nasceu no seio de uma abastada família
judaica. Filho de Emil Benjamin e de Paula Schönflies Benjamin, comerciantes de
produtos franceses. Na adolescência Benjamin, perfilhando ideais socialistas,
participou no Movimento da Juventude Livre Alemã, colaborando na revista do
movimento. Nesta época nota-se uma nítida influência de Nietzsche em suas
leituras.
Em 1915, conhece Gerschom Gerhard Scholem de quem se torna muito próximo,
quer pelo gosto comum pela arte, quer pela religião judaica que partilhavam. Em
1919 defende tese de doutorado, A Crítica de Arte no Romantismo Alemão, que foi
aprovada e recomendada para publicação.
Em 1925, Benjamin constatou que a porta da vida acadêmica estava fechada
para sí, tendo a sua tese de livre-docência Origem do Drama Barroco Alemão sido
rejeitada pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt.
Nos últimos anos da década de 20 o filósofo judeu interessa-se pelo
marxismo, e juntamente com o seu companheiro de então, Theodor Adorno,
aproxima-se da filosofia de Georg Lukács. Por esta altura e nos anos seguintes
publica resenhas e traduções que lhe trariam reconhecimento como crítico
literário, entre elas as séries sobre Charles Baudelaire.
Refugiou-se na Itália, de 34 a 35. Neste momento cresciam as tensões
entre Benjamin e o Instituto para Pesquisas Sociais, associado ao que ficou
conhecida como Escola de Frankfurt, de quem Benjamin foi mais um inspirador do
que um membro. Em 1940, ano da sua morte, escreve a sua última obra,
considerada por alguns o mais importante texto revolucionário desde Marx, por
outros, um retrocesso no pensamento benjaminiano:, as Teses Sobre o Conceito de
História. A sua morte, desde sempre envolta em mistério, teria ocorrido durante
a tentativa de fuga através dos Pirinéus, quando, em Portbou, temendo ser
entregue à Gestapo, comete suicídio. Sua obra exerce grande influência
atualmente no editor e tradutor de suas obras em italiano Giorgio Agamben,
sobretudo acerca do conceito de Estado de exceção.
Escola de Frankfurt – Momento histórico muito forte! (Alemanha as
vésperas da Segunda Guerra Mundial)
Três Grandes fontes de pensamento:
* Marxismo * Romantismo
Alemão * Messianismo Judaico
Baixa Cultura e Alta
Cultura – Escola de Frankfurt
Reprodutibilidade técnica –
Industria Cultural
Perda da áurea da obra de
Arte (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica).
Problema da experiência
Sobre o conceito da história
Walter Benjamin
1
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo
que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance,
que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na
boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de
espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus
pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no
xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma
contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado "materialismo
histórico" ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que
tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e
não ousa mostrar-se.
O poeta Lotze |
2
"Entre os atributos mais surpreendentes da alma
humana", diz Lotze, "está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma
ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro". Essa
reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente
marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A
felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já
respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que
poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está
indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado,
que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice
misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar
que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes
que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram
a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações
precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a
cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o
passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O
materialista histórico sabe disso.
3
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre
os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a
humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer
dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos
seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du
jour — e esse dia é justamente o do juízo final.
4
"Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo".
Hegel, 1807
A luta de classes, que um historiador educado por Marx
jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais
não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas
espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor.
Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor,
da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão
sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola
para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se
para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve
ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.
5
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só
se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que
é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará" — essa frase de
Gottfried Keller caracteriza o ponto exacto em que o historicismo se separa do
materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se
dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.
6
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
"como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência,
tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico
fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao
sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a
existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo:
entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é
preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o
Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do
Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não
estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de
vencer.
7
"Pensa na escuridão e no grande frio
Que reinam nesse vale, onde soam lamentos."
Brecht, Ópera dos três vinténs
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em
ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da
história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o
materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do
coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem
histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o
primeiro fundamento da tristeza. Flaubert,
que a conhecia, escreveu: "Peu de gens devi-neront combien il a fallu être
triste pour ressusciter Carthage". A natureza dessa tristeza se
tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista
estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor.
Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram
antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores.
Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os
corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo,
como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista
histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele
vê têm uma origem sobre a qual ele não pode reflectir sem horror. Devem sua
existência não somente ao esforço dos grandes génios que os criaram, como à
corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que
não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta
de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso,
na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua
tarefa escovar a história a contrapelo.
8
A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de
exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir
um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com
isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se
beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do
progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que
os episódios que vivemos no séculos XX "ainda" sejam possíveis, não é
um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o
conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é
insustentável.
9
"Minhas asas estão prontas para o vôo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
Gerhard Scholem, Saudação do anjo
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa
um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus
olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da
história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde
nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma
tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele
não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivel-mente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o
céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
10
Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos
monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas
reflexões partem de uma preocupação semelhante. Neste momento, em que os
políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas
esperanças jazem por terra e agravam sua derrota com a traição à sua própria
causa, temos que arrancar a política das malhas do mundo profano, em que ela
havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de
que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no "apoio das
massas" e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável
são três aspectos da mesma reali-dade. Estas reflexões tentam mostrar como é
alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a
uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual
continuam aderindo esses políticos.
11
O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na
social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também
suas idéias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi
mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com
a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na
qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho
industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma
grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho,
secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa
de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como
"a fonte de toda riqueza e de toda civilização". Pressentindo o pior,
Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de
trabalho está condenado a ser "o escravo de outros homens, que se
tornaram... proprietários". Apesar disso, a confusão continuou a
propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: "O trabalho é o
Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza,
que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador". Esse
conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como
seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu
interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos
retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os
traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura
uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias
socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido,
visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à
exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de
um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis.
Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que
quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água
marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a
serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de
explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu
ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar
de uma natureza, que segundo Dietzgen, "está ali, grátis".
12
"Precisamos da história, mas não como precisam dela
os ociosos que passeiam no jardim da ciência."
Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida
O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe
combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada,
como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações
de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento
espartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia. Em três
decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o
século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações
futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária
desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um
e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos
descendentes liberados.
13
"Nossa causa está cada dia mais clara e o povo cada dia
mais esclarecido."
Josef Dietzgen, Filosofia social-democrata
A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram
determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a
realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um
progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em
segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da
perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo
essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha
ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser
criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e
concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na
história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e
homo-gêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia
dessa marcha.
14
"A Origem é o Alvo."
Karl Kraus, Palavras em verso
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras". Assim, a
Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de "agoras",
que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como
uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário
antigo. A moda tem um faro para o actual, onde quer que ele esteja na folhagem
do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se
dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu
da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx.
15
A consciência de fazer explodir o continuum da história é
própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução
introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário
funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna
sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim,
os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são
monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na
Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um
incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de
combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos
outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados
nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição
profética, escreveu:
"Qui le
croirait! on dit qu’irrités contre l’heure
De nouveaux
Josués, au pied de chaque tour,
Tiraient sur les
cadrans pour arrêter le jour."
16
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de
um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse
conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história.
O historicista apresenta a imagem "eterna" do passado, o materialista
histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa
de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz "era uma
vez". Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar
pelos ares o continuum da história.
17
O historicismo culmina legitimamente na história universal.
Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais
radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação
teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com
eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia
marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o
movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára,
bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um
choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O
materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta
enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização
messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade
revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade
para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo
modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa
vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da
obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico
são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido
historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas
insípidas.
18
"Comparados com a história da vida orgânica na
Terra", diz um biólogo contemporâneo, "os míseros 50 000 anos do Homo
sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas, Por
essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último
segundo da última hora." O "agora", que como modelo do
messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade,
coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana.
Apêndice
1
O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal
entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é
só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico
postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por
milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os
acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que
sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente
determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um
"agora" no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.
2
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber
o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como
homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o
tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.
Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e
a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração
desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas
nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio.
Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.
1940
Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet
Ensaio obtido em Walter
Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.